Gustavo Deister – blog AVANDA
O que pode a arte senão o que podiam os dois primeiros átomos que se beijaram?
Não consigo compreender a arte como uma criação completamente humana. Penso que o universo vem fazendo arte desde sempre. Se ela é o desdobramento de uma diferença (ou seja, o agrupamento de sensações singulares necessárias para que a façam brotar), diferença esta que por sua vez culmina em outra (quer dizer, uma obra operadora do novo), desde que o ser é, o cosmos com seu caos vem fazendo músicas, pintando quadros, escrevendo poemas, claro, não idênticos aos nossos. E como somos herdeiros desses átomos, somos todos, em certa medida, artistas e amantes.
Não conhecemos as artes das pedras, dos mares, da orquídea e dos insetos porque não nos é de direito; nossos olhos veem o que podem ver e enchem o mundo de coisas humanas.
Certos poetas, um dia, enxergaram essa arte, e a entoaram nos seus cantos enquanto as musas visitavam seus pulmões.
Quando Safo chorou por amor, era desse contato primeiro que veio sua lira: o beijo, o toque; quando Aristóteles dissecava caranguejos e observava formigas, ele respirava a mesma confusão que inspirou o início de tudo, se é que houve um início; Lucrécio desdobrou o livro das coisas porque foi aluno do múltiplo; os vitrais das igrejas pensam entrar Deus porque a luz vem de muito longe, de um espaço inumano; Leibniz fez dançar as mônadas logo um pouco depois que Rabelais deu vida aos gigantes simpáticos: sympathos é mais intenso que compathos ou empathos, e os planetas que dançam a dança das danças, são extremamente simpáticos em sua agressividade macrofísica.
Por isso as divindades de Blake voam tanto nas nuvens quanto rente à terra.
Quando Hölderlin chorou, suas palavras vermelhas eram o afastamento desses átomos que se amaram: ele enlouqueceu; não foi Van Gogh que pintou seus quadros, mas o vento de Arles, e ele o sabia; a teoria das duas almas da persona de Machado, é resultado dos infindos desdobramentos da alteridade da matéria; quando Caeiro conversa com Campos, ouço a voz químico-física das explosões e dos berços de estrelas; Murilo Mendes comparou a eternidade com um queijo, e teve toda a razão, ainda que nunca seja o suficiente; assim, na secura de João Cabral, ele pôde educar-se pela pedra.
A separação entre natureza e cultura sempre foi uma tragédia, que em toda sua possível beleza (e quantas vezes cantamos a separação entre o homem e o resto!), é uma visão deteriorada da existência. Nem os bichos de exoesqueleto, em sua capacidade ósseo-impenetrável, sentem a vida como tal – e sei disso porque sou irmão desses seres medonhos, esquivos, Francis Bacon deformado, Modigliani sem ombros, Cézanne mais expressivo porque sem expressão, Augusto dos Anjos fraterno ao carbono e ao amoníaco.
Ouvi a doce violência do coração dos átomos nas vozes de BIG e Nina, no piano de Bach, no violão de Baden. Um poste não é muito diferente de uma árvore quando se olha bem de perto, com a ironia de que ninguém os abraça: como os abracei nas madrugadas fermentadas. Os cães mijam em ambos, tal qual Diógenes mijara nos convidados que tentaram diminuí-lo como cachorro.
Quem não vê arte e poesia nas coisas, não pode ver no homem, assim como quem não se apaixona intensamente quando jovem, não amará depois de adultecido – disse Drummond numa entrevista. Cansemos de segmentar, já que o cansaço está aí. Peçamos o impossível.
Sobre o autor
Formado em Letras, Filosofia, com Mestrado em Teoria Literária e Doutorado em fase de conclusão. Escreve poesias mas não sabe se é poeta, escreve aforismos mas não sabe se é filósofo. Mais pra Diógenes que pra Sócrates.
Ficou perdido?
Linkamos as personalidades citadas no texto com a Wikipédia. Assim, se bater a dúvida, você pode clicar em cima do nome no texto e sacar a referência.
Publicação original: Gustavo Deister para Blog Avanda.
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