Há muito venho errando. Quando se erra por demasiado tempo, deixa-se de pensar que o erro está relacionado com algo que não é correto. Ele perde, por um devaneio contínuo, sua relatividade, e se torna absoluto, uma espécie de metafísica pessoal e às vezes engraçada. Errar se torna verbo sem complemento, alguma ação intransitiva, movimento sem teleologia.
Fiquei comovido quando vi que há pinguins errantes, como aquele que Werner Herzog teve o privilégio de documentar (Encontros no fim do mundo, 2007). O pinguim se distanciava de seu grupo e marchava em direção ao nada – claro, nada é o nome que damos à ausência de lugar reconhecível no fim do movimento do bicho. Herzog nos deu também Kaspar Hauser. Quando o senhor que o apadrinha lança uma maçã para que caia em determinado lugar, ela vai para outro. Kaspar diz que a maçã não quis cair ali, onde previa seu padrinho. A maçã errou, e o infanto o percebeu na hora, porque sabia que errar era uma propriedade da vida e não dos homens. Já o velho ficou sem entender o que disse Kaspar.
Herzog, que narrou um dia: “meus filmes são os sonhos dos outros”, nos deu também Onde sonham as formigas verdes (1984). Uma tribo de aborígenes na Austrália impedia que certa empresa construísse uma pista de pouso justamente onde viviam e transitavam as formigas verdes. O problema: se as formigas morrerem, a realidade deixa de existir − pensava a tribo. O último membro de uma tribo isolada vai ao tribunal para se defender, contudo, é o último que sabe sua própria língua, e ninguém consegue entendê-lo. Os signos proferidos em sua voz são insignificantes. Ele só pode errar, está do lado de fora da civilização.
Do outro lado do mundo que não tem lado, me comoveu Dodes’kaden, o menino de Kurosawa. Ele ia e vinha com seu trem invisível atravessando um caminho de lixo entre sua casa e a favela japonesa. Certo dia choveu, ele pegou um guarda-chuva, entrou em seu trem (talvez nenhum trem possa ser mais de alguém como este, justamente por não sê-lo efetivamente) e fez o mesmo caminho. Não era exatamente uma pessoa, apesar de persona, mas um resíduo, um tipo de raio idiota.
O Bartleby de Melville, que não conseguia mais trabalhar como escrivão, ou o Molloy de Beckett, que vagava aleatoriamente pelo deserto, longe de casa. O cinema, a literatura, a arte em geral, estão repletos dessas criaturas errantes, dessas aberrações. A primeira pintura nasce de um erro: a mão negativa do hominídeo (nem humano esse ser era ainda!) erra pela parede curva da Caverna de Chauvet. É sua mão grotesca, deformada em ocre vermelho.
Santo Agostinho disse que errar é humano, pois pensava no pecado. Pecar sim, poderíamos compreender como um fenômeno antropológico. Somente nós, que transformamos em fetiches as nossas faltas, nos submetemos a tal martírio. Mas a errância é mais primeva, ela está em algumas pedras que rolam, alguns fechos de luz que desenham um corpo onde não há, alguns pássaros marginais do bando, algumas plantas plagiotrópicas que trepam umas nas outras, nos discos que, porque erraram seu tempo de reprodução, criaram o hip-hop. Errar é certamente criador, e não porque depois disso se acerta. Não é somente por sua pedagogia, ainda que a imagem de algo ou alguém nos conduzindo seja tão reconfortante. Caminho solitário e tortuoso, aberrar.
Ah, quanto errei… A rebeldia vitalista em mim grita: “continuarei errando, ó Esteves sem metafísica, como o vento e as coisas que só existem enquanto se movem!”. Mas sou humano demais, e também falo baixo em ritmo de oração silenciosa, tal qual o verso de Drummond quando este notou que Itabira era somente um retrato na parede: “como dói”.
Sobre o autor
Formado em Letras, Filosofia, com Mestrado em Teoria Literária e Doutorado em fase de conclusão. Escreve poesias mas não sabe se é poeta, escreve aforismos mas não sabe se é filósofo. Mais pra Diógenes que pra Sócrates.
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Publicação original: Gustavo Deister para Blog Avanda.
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